domingo, 17 de fevereiro de 2013

Lembrando de Francisco

        Seis décadas! Que se resumiam nos seus cabelos brancos e suas marcas de expressão. As marcas de uma longa vida. Lígia encontrava-se em pura nostalgia, pois não era só mais um inócuo sábado, era seu aniversário. Não acreditava que tanto tempo se passara... Sessenta anos! E ela ainda esperava ele voltar.

       Olhava para a foto em suas mãos e imaginava se era tarde demais. Ela vivera um grande amor, único e arrebatador! Como ela mesma dizia. E que pelas circunstâncias, não pôde florescer mais do que floresceu. 

        Francisco era o seu nome. Um homem que definições não lhe cabiam, o que ele representava para ela ultrapassava qualquer adjetivo. ''Magnificamente estupendo''? Por mais absurdo que fosse ainda era pouco para o que ela sentia.

        O ano era 1965, em pleno início dos severos governos militares. Chico era ativista do partido opositor e Lígia acabara de filiar-se. Pode até parecer piegas, contudo assim que eles se viram pela primeira vez, o encanto instalou-se. E ela soube, era o homem da sua vida. O cortejo, os beijos atrás dos palcos dos inflamados discursos de seus colegas. Tudo era como ela jamais tinha imaginado. O pedido de namoro foi antes de uma passeata contra o AI-2, com o violão na mão e uma música nos lábios, ele a pediu em namoro. Podia ser mais romântico que isso? Ele era perfeito.

        Era um amor tão intenso quanto o calor do Rio de Janeiro no verão. E após um ano juntos, ele a presenteou com algo que escrevera: ''Morena dos olhos d'água, tira os olhos do mar, vem ver que a vida ainda vale, o sorriso que eu tenho para lhe dar''. Largo foi o sorriso dela, ao ler. E que sorriso bonito ela tinha!

        A repressão tornou-se cada vez pior, estava difícil prosseguir na luta. Todavia ele sempre estava lá, e tudo ficava mais fácil, mais bonito. O tempo foi passando, violência de tudo que era lado, protestos, quase quatro anos juntos, quatro anos combativos e apaixonados! 

        Chico fora mandado para o exílio. E nem sei dizer como ela ficou quando ele partiu. Dizia que um pedaço havia sido arrancado, uma metade afastada... E que a saudade era o pior tormento. As músicas ele levara, o amor ficou e, assim, ela o viu sumir por aí. Um término imposto contra o desejo deles de ficarem juntos. A melhor época, os anos dourados, findaram-se. 

        Para completar sua desgraça, sua família, que nunca fora a favor de sua filiação política ou de seu amor com Chico, a obrigou a casar com um rico empresário e a largar da política! Sua mãe estava doente e seu pai desempregado. Deixar seus dois grandes amores. Essa era a saída mais viável para os tormentos de seus pais, mas não para os dela. O que ela podia fazer? Lutou tanto pela liberdade e terminou encarcerada em sua própria vida. Nem o desespero poderia salvá-la.

        O homem que casara, não era de todo mal. Um ''bom homem''. Sempre afirmava isso com olhos marejados de saudades do seu verdadeiro amor. Após dois anos juntos, Chico voltara do exílio. Lígia nunca se arrependeu tanto de não ter sido obstinada contra seus pais. E, assim, nunca mais se perdoou. Quando ele soube que ela havia casado, marcou um encontro, e às escondidas, se viram pela última vez. Ao partir, ele entregou um envelope que continha uma foto e disse: 
- Vou te ter carinho e nenhuma mágoa, meu amor.

        Agora Lígia olhava para a foto e martirizava-se por não ter vivido ao lado do seu grande amor. Estava sozinha, seu marido morrera, seus filhos já estavam crescidos e independentes, e em todos esses anos o ''bom homem'' nunca fora amado por ela, e nem podia, já que ela sempre amou o magnífico Chico. 

        Ela puxou um envelope de dentro de um baú de couro marrom, com detalhes dourados bem torneados. Era o envelope que ele havia lhe dado quando se viram pela última vez. Ela o abriu, puxou a foto, fitou-a por alguns segundos, e lembrou que eles eram um belo casal. Olhou mais um pouco e depois leu o que estava na parte de trás, escrito por caneta de tinta preta, ela até conseguia imaginá-lo escrevendo:''dorme minha pequena, não vale a pena despertar, eu vou sair por aí afora, atrás da aurora mais serena''.

        Que palavras lindas, realmente, ''magnificamente estupendo'' era pouco! Deu uma leve risada. E, de repente, sentiu uma forte dor, que jamais sentira antes, fechou seus olhos e lágrimas rolaram pelo seu rosto abatido e pairaram nos seus cabelos brancos, viu da janela que lá fora chovia. Então, em um sábado chuvoso ela descansou, um descansar eterno.



G. Farfalla 



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